domingo, agosto 26, 2007

Quem quer o Brasil moderno?

Gaudêncio Torquato Estadão de 26-08-2007

Há no País uma mania de torcer pela desgraça? O autor deste desatino, expresso em mais uma fala extravagante, é ninguém menos que o presidente da República. Que desalmado é capaz de torcer por tragédias aéreas, pela violência que consome a precária reserva de segurança dos habitantes das metrópoles ou pelo tétrico desfile de pessoas desesperadas nos corredores dos hospitais da Paraíba e de Alagoas, onde médicos em greve cruzam os braços diante de pacientes em estado grave?
Lula se queixa de uma torcida contra seu governo. Pode até haver críticas injustas a ações governamentais, principalmente de adversários políticos, mas não há como negar que certos projetos exibem traços eleitoreiros. E que continua no palanque, como denota sua fala no encerramento da Marcha das Margaridas, em Brasília. O mandatário-mor passa boa parte do dia usando o verbo e prometendo verbas. A liturgia eleitoreira impregna a alma lulista. E ela é responsável por exageros e generalizações. Possivelmente o perfil de Lula como eterno candidato passe despercebido das platéias que o ouvem, principalmente quando se trata de multidões em praças públicas. A massa deixa escapar o senso crítico. Diante dela, o sentimento do líder em relação à sua própria multiplicação ganha força. Em se tratando de Lula, a hipótese chega às alturas. O ex-metalúrgico tem obsessiva necessidade de lembrar que é o maior, o melhor, o único capaz de conduzir o povo à Terra Prometida. Lembra João Agripino, ex-ministro e ex-governador da Paraíba, montanha de vaidade, que costumava dizer: “Deus estava com mania de grandeza quando me criou.”
Críticas aos programas sociais do governo apontam o caráter mercadológico e assistencialista que favorece a cultura da acomodação. Quem não se lembra do espalhafatoso Fome Zero, que se perdeu no baú do esquecimento? O Bolsa-Família beneficia 46 milhões de pessoas com uma injeção de R$ 72 mensais para as famílias. Alguns técnicos o consideram um bom programa de transferência de renda. Mas é distributivismo em forma pura, descolado do compromisso com avanços. Joga as pessoas na sacola da mesada mensal. Basta anotar que, em vez de diminuir, o programa se expande. Que lógica é esta? A pobreza, então, aumenta? É criminoso constatar que a maternidade se transforma em commodity. Meninas de 12, 14 ou 16 anos engravidam só para terem direito ao auxílio-maternidade e abrirem uma conta no açougue, na bodega, na padaria ou na loja de celulares. Dessa forma, o governo apenas joga cimento fresco na carcomida base que Sérgio Buarque de Holanda descreve: “O gosto maior pelo ócio do que pelo negócio; certa frouxidão e anarquismo, falta de coesão, desordem, indisciplina e indolência.”
Outra recorrência no dicionário de S. Exa. é a afirmação de que governa mais para os pobres. Aplausos. O arremate, porém, merece reparos. É quando confunde elite com rico perdulário e grupos da velha política. Nesse caso, mistura joio com trigo. A súcia de apaniguados e rufiões que vivem à sombra do Estado não pode ser inserida no espaço asséptico onde profissionais liberais, empresários e comerciantes, professores e quadros especializados exercem com dignidade seu trabalho. Estes também fazem parte da elite que puxa a locomotiva do País. Aliás, a crítica às elites é recorrência na tradição política. Tem sido a bengala oportunista que políticos e governantes adotam para recriminar adversários e quem não comunga de seu ideário. O sociólogo Fernando Henrique, vale lembrar, usava outra designação: “Catastrofistas e fracassomaníacos.” Que, agora, Lula tenta também resgatar.
O viés maniqueísta de atribuir à elite o sinônimo de maldade, compartilhado por segmentos que se proclamam de esquerda e presente no aparelho vocal do nosso presidente, acaba de ser desmontado por pesquisa efetuada pelo sociólogo Alberto Carlos Almeida e que resultou no livro A Cabeça do Brasileiro. A fotografia de um País mais violento, mais corrupto, mais patrimonialista, menos ético, mais preconceituoso, mais estatizante – um Brasil com jeito de mais do mesmo – enche mais os olhos de estratos da base da pirâmide social do que os do meio ou do topo, que detêm maior escolaridade. Para 80% dos que não sabem ler e escrever, um contrato arrumado no governo para um favorecido político não é corrupção, mas um favor, um jeitinho. Coisa que pode ser perdoada. Já para 72% dos formados em curso superior, trata-se de um ilícito. A violência policial, a incúria, o uso do cargo público em benefício próprio, a ajuda do governo às empresas, o assistencialismo, ou seja, o Brasil ortodoxo encaixa-se melhor na cachola de dois terços da população, que forma a base menos escolarizada.
Os beneficiados com o Bolsa-Família – um em cada quatro brasileiros – fecharam contrato de apoio irremovível à figura de Lula. Já as elites aplaudem e vaiam quando há motivos. Veja-se o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (o que seria segurança sem cidadania, algo como matança indiscriminada?), que acaba de ser lançado. O combate à criminalidade é uma demanda prioritária. O que é necessário para dar certo? A combinação de inteligência, estrutura, armamento, quadros policiais preparados. Uma polpuda verba – R$ 6,707 bilhões até o fim de 2012 – foi prometida. Neste ponto, floresce a desconfiança. Como garantir uma coisa que dependerá de outro governante? A descontinuidade administrativa é uma característica dos nossos governos e este fato é percebido (e denunciado) e não digerido pelo paladar das elites.
A mesma desconfiança ocorre em relação aos 40 denunciados no caso do mensalão. O STF deverá acolher a denúncia. Mas o ponto final do processo deverá ultrapassar o mais previsível dos calendários.
Por último, resta ao ministro Luiz Dulci, conselheiro do discurso, cochichar no ouvido presidencial: “O acordo que fizemos com a elite política é o mais amplo da História recente deste país.”

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quarta-feira, agosto 15, 2007

Lições da crise anunciada

PAULO RABELLO DE CASTRO - FSP

A INTENSIDADE e a rapidez da intervenção dos bancos centrais da Europa, do Japão e dos EUA, desde a quinta passada, prenunciam os contornos do que apelidamos de "primeiro confronto sino-americano do século 21". Convenhamos que o objetivo recorrente de Henry Paulson, o poderoso secretário do Tesouro dos EUA, ao visitar tantas vezes a China, não é o de estar fotografando a Grande Muralha ou as paredes vermelho-páprica da Cidade Proibida. A questão é cambial. E fica mais delicada pelo volume de transações sobre um estoque mundial de ativos financeiros de US$ 200 trilhões! A política belicista de George W. Bush abriu um déficit gêmeo (externo e fiscal) acumulado em US$ 7 trilhões, financiado pela emissão de dívidas do Tesouro americano e papéis de empresas e débitos das famílias (casa própria, automóvel etc).
Outra parte desse imenso déficit é bancada por emissão de dólares ou pela venda de ativos de residentes americanos. A avaliação de risco de crédito do governo dos EUA continua sendo triplo A. Mas o que dizer da enorme quantidade de débitos das empresas e das famílias que se endividaram em proporção muito superior às poupanças daquele país e de seus ganhos de produtividade?
Técnicas sofisticadas de diversificação de riscos ("derivativos de créditos" e "securitização") permitem empacotar as dívidas dos clientes e passá-las adiante a aplicadores finais, que, via de regra, nem sabem qual a exata composição de sua "carteira de riscos". Como o planeta é uma economia "fechada" e limitada pela disponibilidade dos elementos da produção mundial, a grande alavancagem de crédito é disputada, palmo a palmo, pelas principais nações, que dependem da conjunção de capitais, talentos humanos, recursos naturais e organização política. Nessa guerra econômico-comercial, capitaneada por chineses e americanos, não cabem nações sem projeto definido, como o Brasil. Perde quem ceder espaço produtivo. E o Brasil tem cedido muito...
Mas, nos EUA, o relativo equilíbrio fiscal e comercial legado por Clinton foi revertido em suprema gastança pela gestão imperial de quem o sucedeu. Alan Greenspan, do Fed, baixou o juro básico para 1% entre 2001 e 2004. Contudo, antes de deixar o Fed, iniciou o "ajuste", trazendo os juros de volta aos 5%.
O impacto desse movimento é mais dramático que sua recente descrição, pelo FMI, como "saudável ajuste de valor de ativos", tampouco está restrito à esfera imobiliária nos créditos mais arriscados (subprime). Os devedores, quando constrangidos, apertam todos os itens do seu orçamento, pois empinaram o papagaio de suas compras e investimentos ao máximo, por anos. Quanto maior a altura, pior o tombo... Não se trata, portanto, de mera "correção", como afirmam analistas de mercado. O que está em jogo é o desfecho do "rouba-monte" entre Ásia e EUA, da China contra o dólar.
Isso é que faz o secretário Paulson cruzar freneticamente o oceano, buscando uma aceleração do valor de moeda chinesa, a fim de acolchoar melhor a "correção" inflacionária do dólar nos EUA.
Por outro lado, a crise não é tão "assustadora", como acoimou o colega Paul Krugman nesta Folha. Assustadora mesmo é a posição dos países que afirmam tardiamente, com equivocado orgulho, estarem "blindados" da crise. Blindado está quem não participou do ciclo de crescimento e prosperidade. Por ter perdido o bonde, o Brasil não cresceu e, agora, comemora o fim da festa, que também perdeu.

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terça-feira, agosto 07, 2007

A grande conspiração

Gaudêncio Torquato

Cícero, ao responder a adversários coléricos, costumava iniciar a peroração com a lembrança: “Oratorem irasci minime decet” (não é decente que o orador se deixe levar pela cólera). O advogado e grande tribuno romano sabia que todas as vezes que a oratória sai do terreno do bom senso para descer a escarpa sinuosa da raiva leva consigo o desatino, a inverdade, a injustiça. Só a cólera explica a tremenda injustiça que Lula comete contra empresários e banqueiros que estariam por trás das vaias que, nos últimos tempos, rondam seu palanque. Ao dizer que não conhece nenhum deles com “biografia que lhe permita sequer falar em democracia nesse país”, atinge frontalmente figuras como Antônio Ermírio de Moraes, Jorge Gerdau e Lázaro Brandão, comandantes, respectivamente, dos impérios Votorantim (50 mil funcionários), Gerdau (32 mil) e Bradesco (80 mil). Tem razão quando diz que banqueiros e empresários “foram os que ganharam muito dinheiro” no ciclo que comanda. Ao insinuar, porém, que eles brincam com a democracia e tramam contra o êxito de seu governo, o orador beira a insensatez ou, para usar uma expressão de Elias Canetti, “sua verdade radicaliza no exagero”. Se Deus fez o homem perfeito, com duas orelhas, uma para ouvir vaias e outra para ouvir aplausos, como lembrou no discurso em Mato Grosso, deu-lhe também uma boca para dizer coisas sensatas.
Debitemos, porém, a extravagância discursiva de Sua Excelência ao momento de extrema sensibilidade que a Nação vive, agravado pela tragédia de Congonhas, cujos desdobramentos reacendem estopins políticos e voltam a incensar o discurso retrógrado: o de pobres contra ricos. Calma com o andor. As manifestações que se expandem, cujo foco clama por menos promessas e mais resultados, nascem no seio das classes médias, grupamento mais sensível aos impactos decorrentes do déficit de governança, dentro do qual se inserem a inação do Poder Executivo, o vazio do Poder Legislativo e a lerdeza do Poder Judiciário. É inegável que o ciclo Lula melhorou substancialmente o ganho de renda dos setores mais carentes - algo em torno de 32% em termos reais, mais que os 20,8% da era FHC. Pesquisa recente mostra ter havido redução de 21% no coeficiente de Gini brasileiro, que mede a desigualdade de distribuição de renda. É, porém, inquestionável o empobrecimento da classe média, cuja renda cresceu, nos últimos anos, entre 7,3% (para quem ganha mais de 20 salários mínimos) e 14,7% (para quem ganha entre um e dois salários mínimos). No cômputo geral, contabiliza-se uma média de 10% de perda no poder de compra desta classe. Ora, os mais sacrificados são os que mais vocalizam indignação. Manifestações e vaias estão entre armas escolhidas para a defesa.
Aos incautos ou difusores da má-fé vai o alerta: não venham com a desculpa de que as elites tramam contra o governo Lula. Há, no País, 15 mil famílias que respondem por 80% dos títulos públicos federais. São elas que ganham com a política monetária, os juros altos, a especulação. É exagero dizer que freqüentam passeatas. Se há empresários identificados com movimentos que clamam por eficiência governamental, é bobagem imaginar que tenham força para mobilizar milhares de pessoas. Ninguém é dono da expressão das ruas. Por isso, o PT comete mais um grave erro de avaliação ao acusar a direita e a imprensa de fazerem ataques ao governo na tentativa de antecipar o debate eleitoral de 2008. Só mesmo ingênuos e tapados por viseira ideológica são capazes de dizer que a imprensa fez a “construção fantasmagórica” do mensalão, inventou o apagão aéreo e monta um cenário de “golpe de Estado”. É inimaginável ouvir do próprio presidente da República, pessoa reconhecidamente habilidosa, que a mesma “gente que fez a Marcha com Deus pela Liberdade”, nos idos de 1964, foi responsável pelo suicídio de Vargas e “levou João Goulart a renunciar” (sic) é a que acorre às ruas contra ele. Dar canelada na bola (Jango foi deposto) é até compreensível, mas confundir o Pacaembu com o Morumbi é imperdoável.
Na leitura do PT, há um complô para desestabilizar o ex-metalúrgico. Por isso, as ruas começam a ser ocupadas pelas elites, comandadas por Ermírio, Gerdau e Benjamim Steinbruch. (Pela cartilha petista, dirigentes do partido, intelectuais e quadros que lotam os milhares cargos no governo não figuram na lista elitista; e o operário fabril Luiz Inácio dá expediente noturno nos tornos mecânicos do ABC paulista, para onde se desloca na cabine de um fusquinha.) A trama, de tão maquiavélica, transforma o presidente em inocente útil ao convidar Nelson Jobim, amigo dos tucanos, para ocupar a pasta da crise nacional. O gaúcho, nesse caso, seria o comandante de tropas inimigas, devendo se beneficiar com o “golpe das elites”. Direitista irreparável, lutaria pelo cetro presidencial. A baita criatividade transborda no alerta que o PT faz aos filiados, conclamando-os à velha luta de classes, para a qual existe até novo slogan oferecido pela marquetagem de plantão: “Presidente, arrume seu povo.”
Debite-se, também, o excesso imaginativo do partido ao corredor escuro que atravessa. Perdeu a identidade e quer recuperá-la, custe o que custar. Por isso se esforça para desfraldar velhas bandeiras, alterar cores, trocar o pano. Tenta preservar Lula, mas critica o neoliberalismo do governo. Como explicar o ensaio de privatização no entorno da Infraero ante a estratégia de fortalecimento do Estado? Este é o dilema a ser enfrentado no 3º Congresso do partido ao final deste mês. Não será fácil a reinvenção. Partido é parte da sociedade. Mas o PT quer ser o todo. Se alguém rejeita seu ideário, é elitista. Se a mídia critica, faz o jogo da direita. Facções internas vivem eterna disputa. Quadros mais equilibrados, como Tarso Genro, são patrulhados. O PT, como os adversários do tribuno Cícero, é um poço de cólera.

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