terça-feira, agosto 07, 2007

A grande conspiração

Gaudêncio Torquato

Cícero, ao responder a adversários coléricos, costumava iniciar a peroração com a lembrança: “Oratorem irasci minime decet” (não é decente que o orador se deixe levar pela cólera). O advogado e grande tribuno romano sabia que todas as vezes que a oratória sai do terreno do bom senso para descer a escarpa sinuosa da raiva leva consigo o desatino, a inverdade, a injustiça. Só a cólera explica a tremenda injustiça que Lula comete contra empresários e banqueiros que estariam por trás das vaias que, nos últimos tempos, rondam seu palanque. Ao dizer que não conhece nenhum deles com “biografia que lhe permita sequer falar em democracia nesse país”, atinge frontalmente figuras como Antônio Ermírio de Moraes, Jorge Gerdau e Lázaro Brandão, comandantes, respectivamente, dos impérios Votorantim (50 mil funcionários), Gerdau (32 mil) e Bradesco (80 mil). Tem razão quando diz que banqueiros e empresários “foram os que ganharam muito dinheiro” no ciclo que comanda. Ao insinuar, porém, que eles brincam com a democracia e tramam contra o êxito de seu governo, o orador beira a insensatez ou, para usar uma expressão de Elias Canetti, “sua verdade radicaliza no exagero”. Se Deus fez o homem perfeito, com duas orelhas, uma para ouvir vaias e outra para ouvir aplausos, como lembrou no discurso em Mato Grosso, deu-lhe também uma boca para dizer coisas sensatas.
Debitemos, porém, a extravagância discursiva de Sua Excelência ao momento de extrema sensibilidade que a Nação vive, agravado pela tragédia de Congonhas, cujos desdobramentos reacendem estopins políticos e voltam a incensar o discurso retrógrado: o de pobres contra ricos. Calma com o andor. As manifestações que se expandem, cujo foco clama por menos promessas e mais resultados, nascem no seio das classes médias, grupamento mais sensível aos impactos decorrentes do déficit de governança, dentro do qual se inserem a inação do Poder Executivo, o vazio do Poder Legislativo e a lerdeza do Poder Judiciário. É inegável que o ciclo Lula melhorou substancialmente o ganho de renda dos setores mais carentes - algo em torno de 32% em termos reais, mais que os 20,8% da era FHC. Pesquisa recente mostra ter havido redução de 21% no coeficiente de Gini brasileiro, que mede a desigualdade de distribuição de renda. É, porém, inquestionável o empobrecimento da classe média, cuja renda cresceu, nos últimos anos, entre 7,3% (para quem ganha mais de 20 salários mínimos) e 14,7% (para quem ganha entre um e dois salários mínimos). No cômputo geral, contabiliza-se uma média de 10% de perda no poder de compra desta classe. Ora, os mais sacrificados são os que mais vocalizam indignação. Manifestações e vaias estão entre armas escolhidas para a defesa.
Aos incautos ou difusores da má-fé vai o alerta: não venham com a desculpa de que as elites tramam contra o governo Lula. Há, no País, 15 mil famílias que respondem por 80% dos títulos públicos federais. São elas que ganham com a política monetária, os juros altos, a especulação. É exagero dizer que freqüentam passeatas. Se há empresários identificados com movimentos que clamam por eficiência governamental, é bobagem imaginar que tenham força para mobilizar milhares de pessoas. Ninguém é dono da expressão das ruas. Por isso, o PT comete mais um grave erro de avaliação ao acusar a direita e a imprensa de fazerem ataques ao governo na tentativa de antecipar o debate eleitoral de 2008. Só mesmo ingênuos e tapados por viseira ideológica são capazes de dizer que a imprensa fez a “construção fantasmagórica” do mensalão, inventou o apagão aéreo e monta um cenário de “golpe de Estado”. É inimaginável ouvir do próprio presidente da República, pessoa reconhecidamente habilidosa, que a mesma “gente que fez a Marcha com Deus pela Liberdade”, nos idos de 1964, foi responsável pelo suicídio de Vargas e “levou João Goulart a renunciar” (sic) é a que acorre às ruas contra ele. Dar canelada na bola (Jango foi deposto) é até compreensível, mas confundir o Pacaembu com o Morumbi é imperdoável.
Na leitura do PT, há um complô para desestabilizar o ex-metalúrgico. Por isso, as ruas começam a ser ocupadas pelas elites, comandadas por Ermírio, Gerdau e Benjamim Steinbruch. (Pela cartilha petista, dirigentes do partido, intelectuais e quadros que lotam os milhares cargos no governo não figuram na lista elitista; e o operário fabril Luiz Inácio dá expediente noturno nos tornos mecânicos do ABC paulista, para onde se desloca na cabine de um fusquinha.) A trama, de tão maquiavélica, transforma o presidente em inocente útil ao convidar Nelson Jobim, amigo dos tucanos, para ocupar a pasta da crise nacional. O gaúcho, nesse caso, seria o comandante de tropas inimigas, devendo se beneficiar com o “golpe das elites”. Direitista irreparável, lutaria pelo cetro presidencial. A baita criatividade transborda no alerta que o PT faz aos filiados, conclamando-os à velha luta de classes, para a qual existe até novo slogan oferecido pela marquetagem de plantão: “Presidente, arrume seu povo.”
Debite-se, também, o excesso imaginativo do partido ao corredor escuro que atravessa. Perdeu a identidade e quer recuperá-la, custe o que custar. Por isso se esforça para desfraldar velhas bandeiras, alterar cores, trocar o pano. Tenta preservar Lula, mas critica o neoliberalismo do governo. Como explicar o ensaio de privatização no entorno da Infraero ante a estratégia de fortalecimento do Estado? Este é o dilema a ser enfrentado no 3º Congresso do partido ao final deste mês. Não será fácil a reinvenção. Partido é parte da sociedade. Mas o PT quer ser o todo. Se alguém rejeita seu ideário, é elitista. Se a mídia critica, faz o jogo da direita. Facções internas vivem eterna disputa. Quadros mais equilibrados, como Tarso Genro, são patrulhados. O PT, como os adversários do tribuno Cícero, é um poço de cólera.

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