quarta-feira, setembro 27, 2006

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EDITORIAL DO ESTADÃO
Desserviços prestados

Com uma explicação realista sobre a corrupção no Brasil - "a prática é sistêmica e ainda que seja condenada acaba aceita pela sociedade" -, o ministro da Cultura, Gilberto Gil, expôs, naturalmente sem querer, um dos dois maiores desserviços do presidente Lula ao povo brasileiro. Ele é o mais comunicativo líder popular da história nacional, capaz de se fazer entender como nenhum outro pela grande massa da população - portanto pelos mais desavisados, deseducados, logo os mais carentes de cultura cívica. Lula também provoca uma empatia que daria inveja ao "pai dos pobres" Getúlio Vargas, formal, remoto e impessoal mesmo à frente das multidões. E o vínculo afetivo - a empatia -, sabe a psicologia educacional, representa meio caminho andado para o aluno absorver as palavras do mestre a quem se sente ligado pelo coração. Pois bem. Dotado desse dom literalmente excepcional de liderança política, Lula desperdiçou a oportunidade histórica de ensinar à grande massa dos seus eleitores os valores básicos da democracia - o que é, aliás, o primeiro dever de qualquer verdadeiro líder político, principalmente num país com um eleitorado com o nível de educação do brasileiro.
Alguns desses valores são a separação entre o público e o privado, o caráter sagrado do dinheiro que os governantes arrecadam dos governados e o imperativo de tratar implacavelmente corruptores e corrompidos, onde quer que sejam apanhados e qualquer que seja a sua posição social ou o seu poderio político. Ostentando ainda a superlativa credencial de ser o migrante iletrado e operário que chegou a chefe de governo - fato inédito, nas democracias, em escala planetária -, ele tinha tudo para ensinar, por palavras respaldadas no exemplo de seus atos como presidente, que a leniência com a corrupção é simplesmente intolerável. Ao contrário disso, como diz Gilberto Gil, o que Lula ensinou aos seus eleitores, à medida que se sucediam os escândalos no seu governo, foi que a corrupção "é uma prática comum" que todo mundo pratica. O que ele condenou na ação criminosa dos seus companheiros não foi a ação criminosa em si, mas o fato de terem sido apanhados com a boca na botija. São "imbecis" e "aloprados". Sua campanha reeleitoral não tem sido outra coisa se não um endosso do cínico ensinamento do dramaturgo alemão Bertolt Brecht: "Erst kommt das fressen, dann kommt die moral" (primeiro vem o rango, depois vem a moral).
A contribuição do presidente para a atual indiferença da grande maioria dos brasileiros pela ética na política - quando as suas condições materiais de existência mudam para melhor - tem ingresso assegurado na história da formação das mentalidades no Brasil contemporâneo. Não é um "erro", como ele classifica as bandalheiras de seus "companheiros". É, sim, um crime. O segundo imenso desserviço de Lula aos seus eleitores típicos e à sociedade em geral está nas suas sistemáticas palavras de mal disfarçado desdém pela educação - o bem mais precioso a que podem aspirar os que nada têm, por ser o único meio seguro de ascensão na escala social. Já no discurso de posse, em vez de lamentar, ele se vangloriou de que o diploma de presidente era o primeiro que recebia.
Desde então, costuma propagar a enormidade de que a escola não é imprescindível para o sucesso pessoal. Como seria, se "este filho de mãe que nasceu analfabeta" (sic) chegou onde chegou? Nem para governar, ele considera os livros mais importantes do que a experiência de vida e a comunhão com os anseios do povo, como afirma e reafirma. Não só para acicatar o antecessor, o sociólogo de renome mundial Fernando Henrique Cardoso. Mas, o que é infinitamente pior, porque acredita nisso. A prova é que Lula já declarou publicamente que ler é aborrecido.
O seu desserviço é tanto maior quando se tem em mente que inumeráveis brasileiros, que nasceram e chegaram à idade adulta em condições tão desfavoráveis como as dele, fizeram das tripas coração para então superar o fardo da sua origem miserável - e acabaram vitoriosos nas atividades que abraçaram. Lula escolheu não estudar quando já podia. Ruim para ele, pior para o País que o tem como presidente. Mas o mínimo a que deveria obrigá-lo o seu proclamado espírito compassivo seria ele ensinar aos despossuídos que a intuição e a inteligência - qualidades que ninguém há de lhe negar - dão frutos ainda melhores quando fecundadas pela escola.